FREIRE,
Cristina. O Paradoxo do Santo. Regina Silveira.in: Figurações
30 anos de Arte Brasileira, MAC USP, 25/09 a 14/11/98 (catálogo
de exposição).
No Paradoxo
do Santo de Regina Silveira, a sombra do Monumento a Caxias, imensa
escultura eqüestre realizada por Victor Brecheret em homenagem
ao patrono do exército brasileiro, projeta-se imponente a partir
da pequena imagem de madeira de São Tiago, patrono militar da Espanha
que inspirou as batalhas contra os mouros. Em nossa história recente,
o Duque de Caxias comandou as tropas brasileiras na controvertida Guerra
do Paraguai, na segunda metade do século passado.
Religião e militarismo, eixos fundamentais do imaginário
latino-americano, são evocados nessa instalação realizada
pela primeira vez no Museo del Barrio de Nova Iorque (1994) com uma pequena
imagem de São Tiago pertencente ao seu acervo contraposta
à sombra de Duque de Caxias, pintada diretamente nas paredes e
no chão do museu.
Como anotou Regina Silveira por ocasião da exibição
do Paradoxo do Santo no Museo del Barrio:
" A diferença entre o objeto e sua sombra, apresentado como um
paradoxo visual e conceitual, é um comentário sobre a História
e a tradição. Ao justapor o Santo ao General eu pretendi
criar um correspondente sintético das relações e
afinidades entre religião, militarismo e poder que historicamente
têm apoiodo as lutas de dominação na América
Latina.
As distorções da perspectiva que esticam e agigantam a sombra
no Paradoxo do Santo são meus instrumentos principais para
enfatizar esses significados visualmente. Eles têm a função
de revelar o General com a espada como o diabólico sombrio "Outro"
do ingênuo e primitivo santo de madeira."
A remontagem do Paradoxo do Santo no Museu de Arte Contemporânea
da USP em São Paulo, não ocorreria sem algumas alterações
necessárias. Como observa Regina Silveira:
"Na versão atual a sombra pintada diretamente sobre as paredes
foi substituída por uma superfície fina, formada por placas
modulares de poliestireno preto. A silhueta do Duque de Caxias agora está
montada por junção de partes, na mesma sistemática
de um quebra-cabeça distribuído pelos três planos
do espaço quase fechado onde se situa. A opção pelo
material de revestimento responde não só à vontade
de dar maior permanência a esta obra, mas também à
tentativa de remeter, de modo mais específico, ao caráter
de exterioridade dos monumentos que ocupam lugares nos espaços
abertos da cidade. No trânsito do incorpóreo anterior (da
silhueta pintada) a esta objetualidade rala, as lâminas de plástico
ainda podem funcionar como uma espécie de achatamento irônico
do caráter de objeto muito volumoso que caracteriza a escultura
eqüestre em questão.
Já o São Tiago de madeira, anônimo e primitivo da
versão original, também necessitou transformar-se a fim
de manter um vínculo permanente com sua nova extensão silhuetada.
Em seu lugar está outro São Tiago, nas mesmas dimensões,
também de feitura primitiva e executado em madeira. A diferença
está na autoria do artista popular local que aceitou interpretar
a imagem do santo guerreiro, mantendo a pose do cavalo e do cavaleiro,
importantes na relação entre o santo e a sombra."
Dessa maneira, em São Paulo, o Paradoxo do Santo integra-se
ao acervo local de imagens compartilhadas ao deslocar, como sombra, o
monumento do centro da cidade para dentro do museu. A perenidade do monumento
de granito e bronze contrasta com a mobilidade de sua sombra que transfigura,
em suas distorções e ambigüidades, o sentido reverencial
dirigido às imagens oficiais, povoadas por heróis e santos,
e interroga, no limite, a visão naturalizada e passiva que deixa
de ver para simplesmente crer.
Não é a primeira vez que monumentos públicos são
ponto de partida para o trabalho de Regina Silveira.
Outro ícone paulistano, o Monumento às Bandeiras,
do mesmo Brecheret, já havia sido apropriado pela artista em cartão
postal da série Brazil Today (1977) e na instalação
Monudentro (1987). Como em Monudentro, o Paradoxo
do Santo oferece ao público uma experiência corporal
e cinestética. Em ambas as instalações as paredes
do museu transformaram-se em tela de projeção de sombras
que condensam arte e política.
|